No âmbito da comemoração do centenário da viagem aérea Lisboa-Funchal, a DRABM evoca esta memorável viagem com o destaque de algumas páginas de publicações periódicas do seu acervo bibliográfico, reúne algumas fotografias do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicentes, em depósito nas suas instalações, e sugere literatura recente sobre a vida e façanhas do notável oficial da Marinha, Carlos Viegas Gago Coutinho.

Como foi o dia 22 de março de 1921?

Há exatamente 100 anos, amarava na baía do Funchal o hidroavião, de fabrico britânico, comandado pelo capitão-tenente Artur de Sacadura Freire Cabral, e pelo oficial de navegação Gago Coutinho. A bordo vinham mais dois tripulantes, o mecânico-chefe Roger Soubiran e, como segundo piloto, o primeiro-tenente Manuel Hortiz Bettencourt.

Segundo o Diário de Notícias de 23 de março de 1921, por volta das 15:30, o Felixtowe F-3 – 4018 pousava entre o vapor São Miguel e a praia. A tripulação foi recebida pelo Capitão do porto e algumas autoridades civis e militares, que acabariam por rebocar a aeronave até à pontinha, com a ajuda da lancha em que seguiam.

Meia hora depois, os aeronautas dirigiram-se de carro para o Palácio de São Lourenço, onde foram cumprimentados e enaltecidos pelo Governante Civil da altura, António da Cruz Rodrigues dos Santos.

Depois dos discursos de homenagem, seguiram-se as saudações da multidão que se encontrava fora do palácio e um brinde com champanhe, na sala amarela. O capitão-tenente, Sacadura Cabral, aproveitou a ocasião para homenagear os seus colegas, capitão Brito Pais e o tenente Bretes, os primeiros aviadores em 1920, a empreender o voo entre Lisboa-Funchal (embora tivessem  ficado a 500 km de distância da Madeira).

Os jornalistas, na sequência do brinde entrevistaram os tripulantes e obtiveram informações sobre o hidroavião e os “mantimentos” que traziam a bordo (Vide separador “Apontamentos”)

O êxito do 2.º voo Lisboa-Funchal resultou da precisão e rigor dos métodos de navegação astronómica, proporcionados pelos instrumentos de navegação aérea como o Corretor de rumos e a adaptação do Sextante da marinha à navegação aérea (Sextante de horizonte artificial).

Retrato de grupo com o capitão-tenente Artur de Sacadura Freire Cabral, sentado, à esquerda, e o capitão-de-mar e guerra, Carlos Viegas Gago Coutinho, à direita, acompanhados pelo mecânico Roger Soubiran, de pé, à esquerda, e, à direita, pelo primeiro-tenente, Manuel Ortins Bettencourt, 1921, MFM-AV, em depósito no ABM, Photographia Vicente, Inv. VIC/13253.

Breve Biografia de Gago Coutinho

Natural de São Brás de Aportel (Faro);

Registado e batizado em Lisboa;

Frequentou a Escola Politécnica;

Em 1889 – concluiu o curso da Escola Naval;

Como geógrafo destacou-se nos trabalhos geodésicos e cartográficos  (delimitação das fronteiras das antigas colónias portuguesas);

Adaptação do sextante da marinha à navegação aérea;

Dedicou-se, mais tarde, à investigação histórica das rotas dos descobridores.

https://www.cm-sbras.pt/pt/noticias/9771/sao-bras-de-alportel-recorda-gago-coutinho-e-defende-a-atribuicao-do-seu-nome-ao-aeroporto-de-faro.aspx
https://ncultura.pt/gago-coutinho-e-sacadura-cabral-os-herois-portugueses/

Fotogaleria

Imprensa

Artigo

«Estrondos, Estampidos, Motores: A Abertura da Madeira à Modernidade»

Jorge Freitas Branco

in Newsletter do Centro de Estudos de História do Atlântico, outubro de 2012

Entendem-se por reveladores culturais os fenómenos materiais ou não pelos quais podemos abordar a fluidez das dinâmicas sociais. Pretendo isolar alguns cujo efeito pertence ao domínio dos últimos, uma vez que se produzem por via sensorial. Pretendo avaliar o impacte de ruídos devidos a ações técnicas na reconfiguração das relações sociais. O período da republicanização da Madeira (1882-1926), definido como de abertura assumida à modernidade, proporciona o pano de fundo para esta tentativa de demonstração.
Enumerem-se acontecimentos. Em 1880, funda-se no Funchal a Esquadra Submarina de Navegação Terrestre, que constitui a primeira iniciativa no género. Nas eleições de 1886, a Madeira elege um deputado republicano. No Rio de Janeiro, em 1892, é inventado o jogo do bicho, como forma de financiar o jardim zoológico privado da cidade. Logo, em 1895, este jogo é ilegalizado, o que o torna popular. Voltando ao Funchal, na sequência de dissidência, em 1903, funda-se a Esquadra Torpedeira de Navegação Terrestre. Dois anos mais tarde, aparece a Esquadra Independente de Navegação Terrestre. Com a entrada de Portugal na Grande Guerra (1916) desativam-se estas esquadras. Ainda nesse ano, a cidade é alvo de um primeiro bombardeamento feito do mar. No ano seguinte ergue-se um monumento às vítimas. Ainda em 1917, dá-se segundo bombardeamento. Em 1919, ocorre a explosão da locomotiva do comboio do Monte, causando vítimas mortais. Em 1920, fracassa um voo da Amadora à Madeira num avião que se perde nas nuvens e cai no mar. Mas em 1921, realiza-se com êxito a primeira travessia Lisboa Funchal, desta vez num hidroavião. Em novembro coloca-se uma escultura evocativa montada sobre um padrão, em Lisboa (doca do Bom Sucesso) e uma réplica no Funchal (atual avenida do Mar). Em 1923, inaugura-se o monumento ao Aviador, evocativo da aeronáutica. Em 1927, fica pronta a estátua de Nossa Senhora da Paz, colocada no Terreiro da Luta.
Situem-se os processos. A navegação a vapor compactou os oceanos, o combustível passa a razão primordial das escalas (apitos, silvos). Interioriza-se a velocidade. O telégrafo acentua a vertigem com que se difundem os acontecimentos. As novas contingências acompanham outras que se exercem pelos sentidos como produtores de relações entre os indivíduos. Alguns são inéditos, outros ganham outros significados. Bombardeamentos e explosão de caldeiras provocam estrondos, que não se confundem com trovoadas ou com os tiros de antiga artilharia. A morte por acidente devida a tais ações técnicas é uma novidade. A vítima fica diferente da do naufrágio tradicional. O corpo recebe outras marcas.
Há navegar e o seu simulacro. As fotografias da época mostram um Funchal com uma baía recheada de embarcações. Em algumas das quintas de gente abastada e influente, ensaiam-se jogos de guerra, na forma astuciosa de batalhas navais disputadas em terra firme. Vasos, mastros, bandeiras, sinais, canhões desmuniciados, algumas centenas de homens fardados, hierarquias e obediências replicadas, confraternizações comprovativas de camaradagens estabelecidas. São associações masculinas, exercitando-se em comportamentos de hegemonias sentidas como estando ameaçadas. Este navegar em seco, à vela e sem vapor, é grito de desespero contra os ventos de mudança. A Grande Guerra é uma guerra a sério – a primeira guerra industrializada –, põe termo a tais parodizações duma elite insular.
Umas devoções ficam e outras emergem. Em agosto, o povo continua a acorrer ao Monte, venerando a respetiva nossa senhora. Mas com a guerra, os bombardeamentos por submarinos, as vítimas, a sociedade assustada canaliza o temor para uma nova devoção. Acima do Monte, é colocada uma imagem patrocinadora da paz. Mas também a técnica entusiasma pessoas, veste-se numa roupagem de masculinidade, porque acarreta risco, exige audácia, funde o indivíduo à máquina, que a sua eficaz manipulação impõe. A crença no progresso da sociedade graças à aplicação do conhecimento científico e técnico suscita uma devoção secular. Nestas décadas, a aeronáutica cria paixões, mobiliza a opinião pública. Uma primeira tentativa de ligação aérea de Lisboa à Madeira acaba num fracasso. No ano seguinte, outros repetem a tentativa, desta vez num hidroavião, e alcançam êxito incontestado, também porque se ensaia um sextante de horizonte artificial, que permitirá, em 1922, a concretização da primeira travessia do Atlântico Sul.
As devoções de cariz religioso constituíam instâncias reguladoras das incertezas com que as pessoas se viam até então confrontadas. A modernidade trouxe outras, de cariz secular. Exprimem-se pela incorporação sistemática do azar na vida social. O jogo do bicho parece assim ser uma importação de emigrantes retornados do Brasil, que traduz mudanças na sociedade, o surgimento de novas informalidades (ou o aprofundamento das existentes…) e sobretudo prova que a sociedade insular é aberta ao exterior.
A adesão à modernidade manifesta-se no fascínio pela técnica: velocidade, vertigem, protagonistas celebrados como heróis. A insularidade ganha outra perceção de tempo e espaço. A mobilidade social fica patente na ascensão de grupos sociais, novas fortunas, o mérito individual concorre com o apadrinhamento instituído. Acontecimentos como a Grande Guerra, fenómenos como o turismo (capital internacional), ou a especulação (bolsa, imobiliário), o jogo clandestino como sua réplica, geram novas atitudes na sociedade. A vida é um jogo e já não só predestinada. A técnica e as suas representações constituem-se em vanguardas de republicanização. A aviação com seus sucessos e fracassos é um desafio desencadeado aos céus. Bombardeamentos (guerra), naufrágios (esquadras terrestres, aviões) e palpites no jogo são reveladores culturais. Estrondos, estampidos, o ruído cadenciado de motores, velocidade, a notícia telegrafada e não trazida por mão ou boca, os significados do grito “Fogo!” e “Lá vai fogo!”, tudo se funde, exigindo do indivíduo adaptação sensorial às referências no espaço e no tempo. A republicanização com suporte ideológico do progresso terá seguimentos, mesmo que em discurso descontinuado. Os grandes aproveitamentos públicos posteriores até ao presente (irrigação, eletrificação, portos, aeroportos, a compactação do espaço originada pelo traçado vial, a mobilidade motorizada) podem ser lidos nesta perspetiva orientada por uma visão antropológica das perceções sensoriais.

Bibliografia

DA MATTA, R., E. SOÁREZ, 1999, Águias, burros e borboletas. Um estudo antropológico do jogo do bicho, Rio de Janeiro, Rocco.

EKSTEINS, M., 1989, Rites of Spring. The Great War and the Birth of Modern Age, Nova Iorque, Mifflin.

LE BRETON, D., 2006, La Saveur du monde. Une anthro-pologie des sens, Paris, Éditions Métailié.

MARTINS, T. F., 2004, O movimento republicano na Madeira, 1882-1913, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico.

PESTANA, C., [1958] 1968, Coisas da Madeira. As Esquadras de Navegação Terrestre, Funchal, Jornal da Ma-deira.

RADKAU, J., 1998, Das Zeitalter der Nervosität. Deutschland zwischen Bismarck und Hitler, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

SAINZ-TRUEVA, J. de, 1991, As esquadras de navegação terrestre ou a memória que se diverte, [Funchal] DRAC, Catálogo.

Apontamentos

Características do hidroavião

Dois motores Rollys -Royce (350 cavalos cada um);

Seis toneladas de peso;

Setenta e duas milhas a hora;

Trazia 50 caixas de gasolina (1 400 kilos);

Munido de aparelho radio-telegrama transmissor e recetor. Devido ao peso do combustível que transportava, foi desmontado para usar apenas o transmissor;

A viagem foi feita com a velocidade de 70 milhas;

Navega sobre o mar com a velocidade de 30 milhas por hora.

Único mantimento a bordo

Uma Caixinha de bombons.

Investigação histórica

Dedicou-se às rotas dos descobridores portugueses e reconstituiu a Rota marítima de Vasco Da Gama, descrita n’Os Lusíadas.

Frases Célebres de Gago Coutinho

«Os mares e terras que descobrimos e ocupámos não os achámos por acaso ou sorte; buscámo-lo metodicamente.»

«Não basta saber voar. É preciso que o mundo conheça que os descendentes dos antigos pioneiros do Atlântico também

sabem voar, como sabem navegar.»

Outros Recursos

Referências

BRANCO, Freitas Branco, 2012, «Estrondos, Estampidos, Motores: A Abertura da Madeira à Modernidade» in Newsletter n.º 15 do Centro de Estudos de História do Atlântico, pp. 12-13.

CHAVECA, Sebastião de Sousa, 2008, Gago Coutinho – Documentos- Fotografia-Episódios, Cic – Centro de impressão Coraze.

Gago Coutinho, geógrafo e navegador, disponível em https://ensina.rtp.pt/artigo/almirante-gago-coutinho/, consultado a 15-03-2021.

LEMOS, Carlos M. Oliveira, 2000, O Almirante Gago CoutinhoApontamento sobre a sua vida e obra, Lisboa, Instituto Hidrográfico.

PEREIRA, Jorge M. Ramos, 1973, Gago Coutinho geógrafo, Oficinas Gráficas da Companhia Nacional Editora.

 

Jornais

Diário da Madeira 1921.