No âmbito das celebrações dos 400 anos do nascimento de Jean de La Fontaine, apresentamos uma seleção de conteúdos centrada na produção literária do autor.
Numa primeira parte, apresentamos o percurso biográfico de La Fontaine e as obras presentes no catálogo bibliográfico do Arquivo e Biblioteca da Madeira, maioritariamente antologias de fábulas. Num segundo momento, faremos um percurso histórico pela evolução da fábula, apresentando exemplos do nosso acervo.

A obra no acervo bibliográfico

No acervo do Arquivo e Biblioteca da Madeira estão presentes cerca de uma centena de espécies bibliográficas da autoria de Jean de La Fontaine, todas elas edições de fábulas, com a exceção de um exemplar de contos, Contes de La Fontaine, de 1891.
A maioria encontra-se em língua portuguesa, mas existe um número considerável de exemplares em francês, onde se inclui o mais antigo da coleção, Fables de La Fontaine illustrées, publicado em 1850, pela editora Delarue.
Relativamente às edições portuguesas, destaca-se Fábulas: traduzidas ou adaptadas por poetas portugueses e brasileiros do século XIX , pela qualidade e diversidade de contributos como os de Filinto Elísio, Gomes Leal, Teófilo Braga, Machado de Assis, Bocage, João de Deus ou Curvo Semedo, numa edição revista e anotada por Cabral do Nascimento.
No que diz respeito aos títulos destinados à infância, são adaptações do original – como é o caso da tradução e adaptação de Maria Alberta Menéres – ou mesmo reescritas para a primeira infância, de que é exemplo o trabalho de Ana Oom.
De entre as várias edições ilustradas, destacamos as que contêm ilustrações de Jean Honoré Fragonard (1732-1806), J. Grandville (1803-1847), Gustave Doré (1832-1883) e Michael Fiodorov (1941-), artistas reconhecidos que contribuíram para outras “leituras” das fábulas.

LA FONTAINE, Jean de, 1850, Fables de La Fontaine illustrées, Paris, Delarue.

Trata-se do exemplar mais antigo da obra de La Fontaine existente no nosso acervo bibliográfico.

Folha de rosto.

Fábula «L’aigle et le hibou».
A fábula apresentada na sua língua original trata-se de «A águia e a coruja», também escolhida por Teófilo Braga para integrar os Contos tradicionais do povo português.

Jean de La Fontaine nasceu na localidade francesa de Château-Thierry, no dia 8 de julho de 1621. Era filho de Françoise Pidoux e de Charles de La Fontaine, inspetor de águas e florestas.
Em 1641 ingressou no Oratório de Reims para estudar Teologia, contudo desistiu ao fim de 18 meses. Estudou também Direito em Paris, entre 1645 e 1647, mas o estudo das leis não seria a sua vocação. Foi então que, por desejo do pai, casou-se em 1647 com Marie Héricart, de catorze anos e um avultado dote.  O casamento não foi bem sucedido, mas o casal teve um filho, Charles.
Após a morte do pai, La Fontaine herdou o seu cargo. No entanto, como o seu interesse sempre tinha sido a literatura, deixou o emprego, a mulher e o filho, e mudou-se para Paris.

Carreira Literária

Na capital frequentou o ambiente literário parisiense, estabelecendo contactos importantes com escritores como Corneille, Racine e Molière.
Em 1657 tornou-se protegido de Nicolas Fouquet, ministro das finanças de Luís XIV e mecenas de vários artistas, a quem dedicou alguns dos seus trabalhos, nomeadamente o poema “Adonis”, publicado em 1658.

Com a publicação de Contes et nouvelles en vers, em 1664, La Fontaine tornou-se conhecido. Tratava-se de uma obra em vários volumes, uma compilação e adaptação em verso de textos da literatura italiana. Alguns anos mais tarde, em 1669, escreveu a narrativa Os Amores de Psique e Cupido, notável pela elegância da prosa e pelo estudo da psicologia feminina.

Apesar de La Fontaine se ter dedicado a vários géneros literários, foi com Fábulas (1668-1694) que conquistou a notoriedade.
Em 1684 tornou-se membro da Academia Francesa, a cujas sessões passou a comparecer com assiduidade. Viveu durante vinte anos como protegido de Madame de La Sablière e Madame D’Hervart, em cujas casas residiu.
Jean de La Fontaine faleceu em Paris, França, no dia 13 de abril de 1695. O seu corpo foi sepultado no cemitério Père-Lachaise, ao lado do dramaturgo Molière.

As Fábulas representam, sem dúvida, o ponto alto da carreira literária de La Fontaine. A obra, constituída por 12 livros, foi publicada em 3 partes. A primeira parte (1668) incluiu os primeiros 6 livros e continha uma dedicatória ao filho do rei Luís XIV.

A monsenhor, o Delfim

Aqui canto os heróis dos quais Esopo é autor;

Elenco de que a história é irreal mas de valor,

Pois verdades contém que servem de lição.

A qualquer ser dou voz, até os peixes falarão:

Tem endereço a nós o que deles se ouvir;

Recorro aos animais para os homens instruir.

La Fontaine
Excerto da dedicatória  «A monsenhor, o Delfim»
In Fábulas, trad. Luiz Gonzaga Fleury

A segunda parte incluiu mais 5 livros (1678-79) e a terceira, o 12º e último livro, em 1694.

As fábulas escritas por La Fontaine são o resultado de múltiplas influências.

«Os assuntos ou temas poéticos das fábulas de La Fontaine não lhe pertencem; uns acham-se nas coleções orientais, como a do Pantcha-tantra, desconhecida no seu tempo; outros vieram até nós transmitidos nas coleções greco-romanas de Esopo, Fedro, Aviano, Bábrio, Baldo; outros acham-se nas coleções árabes, como a da Calila e Dimna, transmitidos a todo o Ocidente a todos os jograis franceses, nos seus fabliaux, e pelos moralistas católicos nos seus exemplários. E contudo, quanto mais conhecido é o tema tradicional, tanto mais bela foi a forma literária individual que La Fontaine deu à Fábula. […]»[1]

O recurso ao género literário da fábula não é propriamente original. No entanto, o escritor destaca-se pela hábil utilização deste género.

«O que faz o supremo encanto de La Fontaine como fabulista, o que constitui a sua imensa superioridade sobre todos os que antes e depois dele trataram este mesmo género, não é decerto a originalidade […] é a vida potente que ele sabe dar a todos esses animais que se movem no imenso tablado da natureza, que falam a linguagem que ele lhes presta, obedecendo a paixões que ele lhes atribui. É que os seus personagens têm a um tempo a verdade humana e a verdade zoológica […].[2]

«La Fontaine escreveu verdadeiramente a comédia humana dos animais. […]»[3]

Luís XIV foi um dos monarcas franceses mais poderosos da história e consolidou o sistema da monarquia absoluta que perdurou na França até à Revolução Francesa.
La Fontaine, frequentador da corte, mas impossibilitado de a retratar na sua condição real, disfarçou-a sob a pele dos animais das suas fábulas.

«La Fontaine apresenta-nos um retrato tipológico do  homem  não  como  ele  deveria  ser  –  tema  tão  caro  aos  medievais  e  à  maior  parte dos renascentistas – mas como ele se apresenta de fato, com suas paixões, seus conflitos e ambições, sua fragilidade e seus desejos de poder e grandeza. Este homem, que ora vemos encarnado na pele de um urso, de uma corsa ou de um leão, ora nas feições de Vênus, na astúcia de Minerva ou na cólera de Júpiter, é o homem que La Fontaine descreve a partir da sua observação do homem  do  século XVII, e em especial, de uma figura em particular, a do homem da corte, o Cortesão-astro, que costumava orbitar a figura talvez mais emblemática do século, Luís XIV, que se autodenominou o Rei-Sol.»[4]

«E ele entretanto, apenas apanhava umas férias, corria a meter-se nas suas queridas florestas de Château-Thierry. Deitava-se de papo para o ar, em cima da relva orvalhada, ouvia os rouxinóis cantar e assobiar os melros, seguia com interesse os trabalhos das formigas, espreitava a lebre desconfiada e a perdiz matreira, e, no meio daquela sociedade especial, lembrava-se então de tudo o que vira na Corte, onde nada lhe passara despercebido […].»[5]

A raposa e a cegonha

«É claro que não podemos reduzir os traços tipológicos de La Fontaine ao homem da Corte. Ele fala da natureza humana, e obviamente de sua pena não escapam nem o agricultor, nem o ladrão ou mesmo o sábio.»[6]

O lavrador e seus filhos

Um lavrador, sentindo vir chegando
O fim da sua vida, e desejando
Que os filhos trabalhassem na cultura,
Chamou-os, e lhes disse: «A sepultura
Por instantes me espera: os bens, que tinha,
Enterrados estão nossa vinha.»
Morto o pai, e tendo eles suspeitado
Que algum grande tesouro sepultado
Lhes deixava na vinha, aparelharam
Enxadas, e solícitos cavaram.
Não acharam tesouro, é bem verdade;
Mas a vinha deu tanta novidade,
Que se pode dizer que foi tesouro,
Segundo o que rendeu de prata e ouro.

Fábulas, livro 5, IX (trad. Curvo Semedo)

Segundo Nelly Novaes Coelho[7]

Fábula – uma definição

Pequena composição de forma poética ou prosaica [que] narra um facto alegórico, cuja verdade moral se esconde sob o véu da ficção e na qual se fazem intervir as pessoas, os animais irracionais personificados e até coisas inanimadas […].

Como género literário, a fábula procede da Índia (por volta do séc. VIII a.C.), dali passa à Pérsia, China e Japão; chegando à Grécia e a Roma e daí aos nossos tempos. Esse percurso abrange quatro idades históricas: a Antiga ou Primitiva (Índia e Grécia), a Média (Roma e Ocidente medieval e renascentista), a Moderna (do séc. XVII ao XIX) e a Contemporânea (séc. XX).

A Idade Primitiva da fábula é representada pelas fábulas orientais, pela sabedoria do grande fabulador Pilpay e pela famosa colecção Calila e Dimna (fábulas filosófico-morais cujas principais personagens são dois chacais). A Idade Primitiva abrange o período grego, com o escravo frígio, Esopo, que fez da fábula uma útil arma de persuasão ao bem agir ou arma de crítica aos vícios dos costumes. Aristóteles, em sua Retórica, refere-se a Esopo (séc. VII-VI a.C.) como “pai da fábula ocidental”, embora muito antes dele, Hesíodo, Arquíloco e Herodo já tivessem se referido aos motivos fabulares do “rouxinol e o gavião”, “ a águia e a raposa” e “o cavalo e o porco”.

A segunda Idade, – a Média (séc. I a.C. ao séc. XIV d. C.) corresponde ao período de romanização da Europa, queda do Império Romano e consolidação do Cristianismo, como base da civilização ocidental que então surgia. O grande fabulista dessa Idade é o escravo Fedro (15 a.C/50 d.C.) que aprimorou a forma da fábula esópica e consolidou-a como Tradição, cuja influência atravessa toda a Idade Média, com dezenas de importantes compiladores: San Cirilo, Vincent de Beauvais, Roquefort, Arcipreste de Hita, Guillaume Hauden, Guillaume Gueroult, Faërne, Pantaleon Candidus e outros.

A terceira Idade, – a Moderna, foi a idade de ouro da fábula, elevada que foi à alta categoria poética por La Fontaine (1621-1695) e difundida por toda a Europa por nomes como: Lamotte (França), Samaniego e Iriarte (Espanha), John Gay (Inglaterra), Lessing (Alemanha), Katz (Holanda), Bogdanowstch e Kriloff (Rússia) e Manuel Mendes da Vidigueira (Portugal), – conceituado humanista do séc. XVII, que publicou várias edições e reedições das Fábulas de Esopo traduzindo-as directamente do grego e inventando outros. Todos eles seguem a temática tradicional, esópica, mas aperfeiçoam a forma, nacionalizam os temas e imprimem ao género um ludismo crítico que seduziu (e seduz) o grande público.

A quarta Idade, – a Contemporânea, vê, por um lado, o crescente desinteresse pelo género da fábula esópica, no âmbito da literatura adulta e, por outro, um crescente interesse pelo fabulário tradicional, no âmbito da literatura para crianças.
Principalmente a partir do anos 60/70 (quando se dá o boom da Literatura Infantil) até os nossos dias (anos 90), as antigas fábulas têm sido redescobertas e não só reinventadas em seus temas de origem, como novas fábulas vêm sendo inventadas, com a matéria complexa e contraditória oferecida pelo mundo deste final de milénio. O denominador comum a todas elas – tradicionais ou reinventadas – é a crítica lúdica aos erros dos indivíduos ou da sociedade, e a escolha de animais como personagens, convivendo com os humanos.

Nelly Novaes Coelho in E-Dicionário de Termos Literários

A fábula política de Orwell

A obra A Quinta dos Animais, de George Orwell, é um dos melhores exemplos de uma fábula do século XX. Trata-se da história de um grupo de animais que se revolta contra o dono da quinta, esperando criar uma sociedade onde todos pudessem ser iguais, livres e felizes. Contudo, a administração da quinta cai sob a ditadura de um porco chamado Napoleão.

Historicamente, foi escrita tendo em conta os eventos decorridos desde a Revolução Russa, em 1917, até à implementação do regime estalinista, do qual Orwell era um crítico feroz. No entanto, esta fábula pode ser aplicada a todos os regimes totalitários.

A Quinta dos Animais é muito mais do que propaganda política. Através do recurso à fábula, à linguagem direta e à simplicidade do ponto de vista dos animais, Orwell deu a esta obra uma leveza que seria difícil encontrar num ensaio político. Esse é um dos motivos que contribui para o seu sucesso e universalidade.

[1] BRAGA, 2016, Fábulas, p. xxx.

[2] CHAGAS, 2016, Fábulas, pp. xix-xx.

[3] CHAGAS, 2016, Fábulas, p.xx.

[4] AVILA, 2018, «A Flatterie nas Fábulas […]», p.33.

[5] CHAGAS, 2016, Fábulas, p. xxvi.

[6] AVILA, 2018, «A Flatterie nas Fábulas […]», p.35.

[7] COELHO, 2009, «Fábula».

Caderno de exploração para famílias

Fábulas em Casa
A partir de 23 abril
Fábulas no Jardim
Data a anunciar

As escolas do 1.º ciclo foram desafiadas a participar com trabalhos alusivos às Fábulas de La Fontaine.

Apresentamos o resultados da escolas EB1 PE da Ajuda e EB1 PE Visconde Cacongo.

EB1 PE da Ajuda

EB1 PE Visconde Cacongo

Animal Farm (1954)

Animação baseada na obra de Orwell

História Crítica da Fábula na Literatura Portuguesa

Catálogo da Fábula na Literatura Portuguesa

Projetos do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição que tem como objetivo principal identificar e indexar o corpus principal da fábula na literatura portuguesa, desde a Idade Média até à época contemporânea.

Referências

AGUIRRE, Mercedes, 2016, Animal Farm and the beast fable, disponível em www.bl.uk/20th-century-literature/articles/animal-farm-and-the-beast-fable, consultado em 2021-02-07.

AVILA, Fabio Rodrigues de, 2018, «A flatterie nas Fábulas de La Fontaine: a corte vista por um moralista do século XVII», in Lettres Françaises, n.19 (1), disponível em https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/11355, consultado em 2021-02-03.

COELHO, Nelly Novaes, 2009, «Fábula», in CEIA, Carlos (coord.), E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), disponível em http://www.edtl.com.pt, consultado em 2021-01-18.

PRIETO, Beatriz, s.d., Curiosidades sobre La Fontaine e suas fábulas, disponível em https://www.aliancafrancesa.com.br/novidades/curiosidades-sobre-la-fontaine-e-suas-fabulas/, consultado em 2021-01-18.

SUTHERLAND, John, 2016, «An introduction to Animal Farm», disponível em https://www.bl.uk/20th-century-literature/articles/an-introduction-to-animal-farm, consultado em 2021-02-27.

SYKES, Leslie Clifford, 2020, «Jean de La Fontaine», in Encyclopedia Britannica,  disponível em https://www.britannica.com/biography/Jean-de-La-Fontaine consultado em 2021-04-06.