UMA NECESSIDADE EXTRAVAGANTE…
Na Madeira, entre 1658 e 1665 os mercadores britânicos organizaram-se no que chamaram de Fábrica Britânica. Por volta de 1812, a Fábrica tinha não apenas estabelecido um fundo para acudir os náufragos e os desamparados, entre outros súbditos britânicos carentes de ajuda, mas havia ainda construído dois cemitérios e um hospital, para além de possuir bombas de incêndio. Até à década de 1830, a Fábrica pagava impostos a várias entidades portuguesas oficiais, incluindo o Governador da ilha, bem como os salários do juiz conservador e do seu escrivão. Data de 1808 a primeira evidência do seu esforço concertado para obter “um lugar de devoção” para os protestantes britânicos que habitavam nesta ilha.
A história demonstra que a economia, frequentemente de mãos dadas com o poder, é causa de certos movimentos culturais. Por exemplo, o financiamento pela Fábrica Britânica de um novo cemitério militar, também em 1808, foi ordenado pelo comandante da guarnição militar na ilha, o General Beresford.
Podemos com facilidade concluir que não é por mero acaso que um projeto de construção de uma capela protestante surja em plena ocupação britânica da Madeira.
Nos livros da Fábrica Britânica há um registo, datado de 1810, de uma resolução formal para que, do fundo de caridade da Fábrica, se pusesse de parte “em cada ano a soma de 200 mil réis” (cerca de 400 libras) para a construção de uma capela. No fim do mesmo ano, a Fábrica Britânica adquiriu dois terrenos apropriados para a construção, pelo preço de 4 400 000 réis, bem como uma parcela adjacente, comprada alguns meses mais tarde por 800 000 réis. Estes lotes equivalem à área que é hoje ocupada pela Igreja Inglesa e respetiva casa paroquial na Rua do Quebra-Costas. A autorização para construir foi requerida em 1813 a D. João VI (em abril) e por este deferida por carta enviada do Brasil (em junho). A construção da capela iniciou-se em 1817 e foi concluída em 1822.
Planta dos edifícios e jardins da igreja, 2015, HTC 375
O FIM DOS SEPULTAMENTOS NO MAR
Em 1654, após a execução de Carlos I de Inglaterra, Oliver Cromwell, enquanto “Lorde Protetor”, assinou com D. João IV de Portugal o Tratado de Westminster. Entre as várias disposições do Tratado incluía-se a permissão de os ingleses residentes em Portugal praticarem em privado a religião protestante. Contudo, pode afirmar-se que na Madeira a história da prática pública da religião protestante teve início em 1761, quando William Naish, o Cônsul-Geral britânico, obteve de D. José I permissão para adquirir um terreno destinado a um cemitério, com a condição de que o mesmo se localizasse fora da cidade do Funchal. (Até esta data, os restos mortais dos protestantes assumidos eram atirados ao mar próximo do Garajau.) Os residentes britânicos na ilha adquiriram um terreno do lado de fora das muralhas da cidade, em frente ao atual Largo do Visconde do Ribeiro Real, na extremidade oeste da Rua da Carreira. O cemitério recebeu o nome de “The Nation’s Burial Ground”.
Em 1887 a Câmara Municipal do Funchal determinou a expropriação deste imóvel para efeitos de alargamento da estrada. Levou três anos até que os membros da Igreja Inglesa concluíssem a remoção das sepulturas, lápides e solos para o atual Cemitério Britânico, a cerca de 200 metros de distância. Os portões originais do primeiro cemitério foram reerguidos de frente para a Rua Dr. Brito Câmara, onde podem ainda hoje ser vistos.
A entrada original para o cemitério britânico (“The Nation’s Burial Ground”), HTC 196
CONCEITOS INICIAIS
Ao contrário do que muitos julgam, o Cônsul Henry Gordon Veitch não desenhou o edifício da atual Igreja Inglesa, primeiramente conhecido como a Capela da Fábrica e que depois se tornaria na Capela Consular. (A designação definitiva – da Santíssima e Indivisa Trindade – seria atribuída em 1860 com a consagração da igreja pelo Bispo Anglicano da Serra Leoa, em cuja diocese foi integrada.) Como capela privada, contornou as leis portuguesas que proibiam o culto público da fé protestante. A autorização real para a construção do edifício continha uma cláusula que proibia a edificação de uma torre sineira. Sabemos, a partir de atas consulares, que três desenhos do edifício foram remetidos de Londres; em 8 de janeiro de 1817 um sub-comité escolheu um dos desenhos. Ao Cônsul Veitch seria atribuído o papel de gestor do projeto de construção. Constatamos hoje que o desenho escolhido se enquadra na arquitetura vernacular religiosa neoclássica britânica, então em voga, a qual remonta à reconstrução de edifícios religiosos subsequente ao Grande Incêndio de Londres de 1666, tornando-se predominante a partir de 1760. Formatada nos padrões de bom gosto da época, o edifício da Igreja Inglesa acabaria por emergir no Funchal em formas simplificadas, ainda que com uma geometria sagrada de possível inspiração maçónica. Registos financeiros coevos identificam João José dos Santos como o engenheiro com responsabilidades iniciais na obra e Raphael Trajani como o arquiteto responsável pela construção, com um salário mensal de 45 000 réis.
Cônsul britânico Henry Gordon Veitch (1782-1857) e sua esposa Margaret Harrison (1786-1837), HTC 72
Carta de Vida S. Veitch para o Rev. Graham, 1934-08-02, HTC 72
Uma fonte batismal foi encomendada em Lisboa em 1836, por 1 866 117 réis, a partir de um desenho do maçom local Francisco António da Silva, que recebeu 3000 réis. O seu desenho simples (escolhido a partir de três versões propostas por Francisco da Silva) inclui, de modo proeminente, um triângulo. Assim, apesar de o nome da igreja só ter sido atribuído oficialmente em 1860 aquando da sua consagração, a evidência sugere que o símbolo da Trindade/triângulo já se encontrava estabelecido desde a fundação da capela. Curiosamente, o edifício da catedral anglicana de Gibraltar é posterior à Capela Consular do Funchal, mas foi consagrado primeiro, sendo que ambos partilham o nome da Santíssima e Indivisa Trindade.
FUNDAR UMA IGREJA
Segundo narrativas iniciais, na lista de doadores para a construção da capela contavam-se os nomes de Jorge III, da Princesa Real, do Príncipe de Saxe-Coburgo (mais tarde, Rei Leopoldo da Bélgica), do Duque de Wellington, do Lorde Nelson, da Duquesa de Bedford, etc. Contudo, investigação recente em registos contabilísticos anteriores à fundação da capela, hoje no arquivo da Igreja Inglesa, demonstra que estes eram nomes de navios que contribuíram para o novo fundo da igreja e não as próprias personalidades ilustres. Com efeito, o financiamento da construção do edifício depressa encontraria dificuldades, conduzindo à aquisição lenta e faseada de materiais, sendo que o capital inicial foi obtido por empréstimo a mercadores e devolvido com juros anuais pagos pelos fundos da igreja. Cada coluna de pedra usada nas fundações do edifício custava 58 000 réis. Estes elevados custos construtivos, acrescidos de vários problemas com a drenagem do terreno, explicam o facto de as estruturas principais terem levado cinco anos a ficarem concluídas. O interior da capela encontrava-se por concluir a quando do início dos serviços religiosos em 1822, tendo o púlpito sido instalado em 1827, pelo valor de 4600 réis. A decoração original era simples e quase monástica, com as paredes interiores caiadas de branco e no exterior em ocre.
Planta do piso térreo com representação dos bancos de caixa originais e nomes de família, ant. 1853, HTC 13
Ao contrário do que possa parecer, a cúpula consiste numa estrutura de madeira suspensa. Em agosto de 1830 o telhado ficou danificado em consequência do disparo de tiros de canhão na Fortaleza do Pico. Em abril de 1842 regista-se o primeiro ataque de térmitas na estrutura do telhado, tendo a reparação custado 500 réis.
Os documentos do arquivo mostram que em 1837 havia 368 lugares sentados distribuídos por 36 bancos de caixa e 7 caixas de varanda, com 12 bancos temporários. As famílias pagavam uma taxa anual para reservar cada banco de caixa. O salário do primeiro capelão ascendeu ao ambicioso montante de 400 libras anuais, o que conduziria a tentativas posteriores de reduzir este valor.
UMA GEOMETRIA SAGRADA
Em 2015, em preparação para o Bicentenário, o conselho da igreja encomendou ao arquiteto João da Cunha Paredes um minucioso estudo arquitetónico.
A ideia de construir uma sala de concertos na cripta foi abandonada por falta de fundos, mas iniciou-se o restauro do edifício. Para além do mais, o estudo
desvendou a geometria sagrada do edifício, pela qual, através de unidades de medida imperiais, a capela foi construída como um quadrado perfeito, cada fachada com 69 pés (21,3 metros) de comprimento, com múltiplos do número 3 a serem usados ao longo das várias dimensões (o diâmetro do círculo das colunas tem 36 pés), e a sua configuração interior centrada no círculo de colunas, numa representação da descida do Espírito (círculo) ao Mundo Material (quadrado). Linhas projetadas a partir do pináculo da cúpula, em direção a cada uma das esquinas, produzem uma pirâmide perfeita.
Reconstituição arquitetónica do edifício da Igreja Inglesa, 2017, HTC 375
O Cônsul Veitch, forçado a defender a arquitetura da capela em face de algumas críticas, explicou que a inspiração era o Santo Sepulcro de Jerusalém (curiosamente, essa era a mesma inspiração para cristãos ortodoxos e para a Ordem dos Templários). Em outubro de 1823 a comissão administrativa da igreja destituiu-o enquanto gestor do projeto, assumindo as suas funções e supervisionando a instalação do mobiliário. Não obstante, Veitch continuou a fazer encomendas para a capela desde o Reino Unido sem a permissão da comissão, o que provocou alguma animosidade.
EXPLICAÇÃO DA DECORAÇÃO INTERIOR DA IGREJA
A decoração do interior da igreja conheceu quatro principais períodos históricos: o conceito inicial (1820-35), os anos de Lowe (1835-53), o vitoriano tardio (1877-80) e as revisões da década de 1930.
Interior da igreja (1853-1880), HTC 37
Desenho original para as janelas basculantes, 1853, HTC 25
Os bancos de caixa foram finalmente removidos em 1853 (chegara-se já a acordo em 1836 acerca da disponibilização de fundos para o efeito) e substituídos por simples bancos góticos, feitos localmente a partir de instruções e materiais enviados de Londres e possibilitando uma maior acumulação de fiéis. Juntamente com a fonte batismal e com a instalação do órgão, estas mudanças dispendiosas sugerem que a principal motivação da capelania do Reverendo Lowe foi afastar do círculo e do púlpito o foco quer físico, quer espiritual, e recentrar esse foco no quadrado e no altar (mesa da comunhão), mais retilíneos, em linha com as inclinações teológicas tractarianas do Movimento de Oxford. A controvérsia gerada por estas disputas teológicas iria escalar num cisma religioso, que irrompeu no seio da tranquila comunidade anglicana da Madeira, e que, em Inglaterra, atingiria de uma assentada os veneráveis corredores de Whitehall, Westminster e do Castelo de Windsor, ecoando ainda muito depois da partida de Lowe e subsequente morte na Baía da Biscaia em 1874.
Pouco sobra da decoração interior original, para além do Olho de Deus na cúpula e das principais estruturas do edifício. Mesmo nessa altura, as paredes interiores que separavam o que é hoje o batistério, a noroeste, e a zona de receção, a sudoeste, haviam há muito sido removidas para criar um espaço interior homogéneo, e a biblioteca e as casas de banho que encerravam seriam transferidas para o salão da igreja e para a casa paroquial por volta de 1930. O púlpito original e o atril foram sucessivamente rebaixados desde a sua posição inicial. As janelas basculantes em vidro têm uma configuração original histórica (1853) e, ao tempo, devem quase ter sido uma solução bastante inovadora para facilitação da circulação do ar. No verão de 2022, no contexto das comemorações do Bicentenário, os bancos góticos foram finalmente removidos e substituídos por cadeiras individuais, mais práticas e adaptáveis, adicionando flexibilidade ao espaço interior.
UM SONHO VITORIANO TARDIO
As colunas esguias e em ferro fundido, dispostas em círculo e arrematadas em forma de palmeta, típicas de meados do século XIX, que são visíveis sob as varandas, foram encomendadas no Reino Unido como uma solução para a instabilidade do edifício, ao tempo erradamente atribuída ao grande crescimento da congregação de fiéis, e não ao abatimento da fachada norte em virtude da falta de fundações adequadas. Uma comparação cuidada das fachadas norte e sul permite hoje perceber que, na reconstrução de 1850-60 da fachada norte, foram efetuados melhoramentos estéticos nos peitoris de pedra e nas ombreiras das janelas, de forma idêntica nas fachadas frontal e traseira, mas apenas simulacros pintados dessas intervenções são visíveis na fachada sul.
Interior (1880-1930), piso térreo, PER 544
Interior e orgão da igreja (1880-1930), PER 545
A principal alteração da decoração interior, visível ainda hoje, surgiu em 1880, quando a De Wilde & Gardener, uma empresa de designers de teatros sedeada em Londres, em St. Martins Lane, 112, Covent Garden, foi convidada a propor uma atualização da decoração. O esquema final de decoração continha um toque dramático no estilo vitoriano tardio, que envolvia a falsa marmorização das colunas em pedra com capitólios escurecidos, a decoração da varanda a estêncil, a adição na abside de um teto azul celeste e estrelado, e a pintura do arco do proscénio com um mural em tela com imagens de folhas de palmeira e lírios, à maneira dos Movimentos Pré-Rafaelita e Esteticista, ainda em voga. (As folhas de palmeira e os altares em pedra haviam sido banidos do interior das igrejas desde a iconoclástica Reforma Inglesa.) A cor das paredes interiores foi descrita como “Vermelho de Pompeia”. Depois de uma vistoria ao local por J. S. Gardener, um artesão foi enviado de Liverpool no SS Loanda com 250 quilos de materiais para a obra de redecoração, incluindo aguarrás e tinta. Ao artesão, que tomara a Madeira como um degredo, foi dado um adiantamento de 5 libras, a título de incentivo para que metesse mãos à obra. O próprio De Wilde recusou-se a viajar para supervisionar o trabalho, invocando a geografia acidentada da ilha e os incómodos da viagem de barco. O artesão incógnito, que trazia consigo esboços a lápis e apontamentos coloridos para os desenhos da abside e dos murais arqueados do proscénio, cortou no local os estêncis para a varanda de acordo com o seu próprio desenho e usando, como modelo, as “igrejas de Florença”.
REVISÕES NO SÉCULO XX
Vários documentos demonstram que em 1908 a igreja sofreu uma tentativa de assalto, que visou as pratas guardadas no grande cofre que o conselho da
igreja adquirira na Chubb & Sons, de Londres, e instalara em 1888. A porta do cofre, apesar dos danos sofridos, resistiu, tendo-se retirado apenas dinheiro
das caixas de esmolas.
Cópia de fatura de aquisição de uma porta
de ferro para um cofre, feita à Chubb & Sons
Lock Safe, Londres, 1888, HTC 89
Fatura relativa a obras de reparação da
igreja e de um cofre, junho de 1908, HTC 25
Fatura emitida pela Wippell & Co., de Exeter,
conhecida empresa de materiais para igrejas,
1899, HTC 25
Fatura da Madeira Electric Lighting Co., pelo fornecimento de eletricidade à igreja, 1913, HTC 89
Em novembro de 1913 foi instalada luz elétrica, por 900 réis, mas, curiosamente, só se instalaria um contador em dezembro de 1914. (A Madeira Electric
Lighting Company Limited, a primeira empresa de eletricidade na Madeira, abrira em 1897.)
Em março de 1915 a Câmara Municipal do Funchal autorizou a colocação de sinais rodoviários que identificavam as direções para a “Igreja Inglesa”. Alguns destes sinais são ainda hoje visíveis, ostentando a designação da igreja mais comum para os madeirenses. Utilizou-se o fundo Lindon para construir a casa do capelão, em terrenos previamente adquiridos na Rua do Quebra-Costas. Designada The Parsonage, a casa foi construída pelos Leacock em 1925, por um custo de 2300 libras, a que acresceram 680 libras para o salão paroquial da igreja.
Na década de 1930 o conselho da igreja decidiu introduzir alterações no edificado. Assim, construiu-se a capela lateral, mobilada com novos retábulos em carvalho e uma mesa de comunhão desenhada por Mademoiselle M. Brouhan e instalada em 1937. A abside foi ornamentada com impressionantes painéis de mogno flamejante, e as tábuas originais douradas com as “Palavras de Deus” (que incluíam o Credo dos Apóstolos, os Dez Mandamentos e o Pai Nosso), dispostas ao centro por detrás da mesa de comunhão desde a abertura da capela, foram movidas para a parede a oeste, onde permanecem hoje em cada um dos lados da entrada principal. Numa visita posterior, o Bispo de Serra Leoa criticou o tom claro do mobiliário de carvalho da capela lateral e insistiu que o mesmo fosse escurecido de modo a combinar com a nova mesa de comunhão da abside principal (altar) que havia sido projetada em mogno pelo capelão titular.
O conselho da igreja ignorou as observações do Bispo até pelo menos o falecimento de Mademoiselle Brouhan, alguns anos mais tarde – o que é ilustrativo do modo como o órgão de governação da igreja amiúde seguia o seu próprio caminho, frequentemente influenciado pela própria congregação local e mantendo um alto grau de independência, o que ainda hoje se verifica.
Alvará de licença da Câmara do Funchal para a colocação de sinais rodoviários, 1915, HTC 89