BREVES TRAÇOS BIOGRÁFICOS

António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia nasceu em São Vicente em Setembro de 1921. Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ingressou como conservador no então Arquivo Distrital do Funchal em Dezembro de 1953. Por portaria da Junta Nacional da Educação foi nomeado delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira em Janeiro de 1954. Dois anos depois, integrou a comissão directiva do recém-criado Museu da Quinta das Cruzes designada pela Junta Geral do Distrito em 1956. Deveu-se a António Aragão, entre outras intervenções, a iniciativa da instalação de um Jardim Arqueológico no belíssimo parque que circunda a vetusta Casa das Cruzes. Absorvido na investigação histórica e na defesa do Património Cultural, solicita, não obstante, uma licença ilimitada em Janeiro de 1961 e abandona as funções que vinha exercendo no Arquivo. No mesmo ano, consumadas as escavações arqueológicas a que procedeu no local onde se erguia o Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz, partiu para a Europa e, na qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, estudou Etnografia na Universidade de Paris, com estágio no Museu do Homem. Ainda em Paris, especializou-se em Museologia sob a orientação de Henri Rivière, mais tarde director do Conselho Internacional de Museus da UNESCO. Seguiu posteriormente para Roma onde fez a aprendizagem de restauro de Arte no Instituto Central de Restauro, estagiando depois no laboratório de restauro do Vaticano. Já se achava na Madeira em 1964, mas somente em 1969 logrou regressar como conservador ao Arquivo Distrital, assumindo em 1972 o cargo de director até à sua aposentação em Dezembro de 1986. Publicou diversas obras no âmbito das suas investigações sobre a História insular. Faleceu no Funchal em Agosto de 2008.

António Aragão fotografado na revista
alemã «Merian». Janeiro 1969.

Em 1972, António Aragão criou a Série Documental do boletim Arquivo Histórico da Madeira, tendo então sido transcrita a preciosa documentação inserta no Tombo 1.º do Registo Geral da Câmara do Funchal que remonta ao séc. XV.

As belíssimas janelas manuelinas montadas por António Aragão no parque da Quinta das Cruzes e os fragmentos do pelourinho do Funchal, desenhados por ele próprio, implantados no Jardim Arqueológico. Fotos Perestrelos. Década de 1960.

1959

1970

1979

1981

1984

1987

1992

AS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS NAS RUÍNAS DO CONVENTO DE NOSSA SENHOR DA PIEDADE DE SANTA CRUZ EM 1961

Tratou-se da primeira intervenção arqueológica realizada na Madeira e deveu-se à iniciativa pioneira de António Aragão. Tudo começou em 1957, quando a construção de um aeroporto na freguesia de Santa Cruz era já uma certeza. António Aragão levou então a cabo uma prospecção no local onde apurara, fruto das suas aturadas investigações, ter sido erguido o Convento de Nossa Senhora da Piedade, uma vez que, de acordo com o projecto, seria abrangido pela almejada obra aeroportuária. Nessa primeira sondagem, colheu vestígios inequívocos de que as ruínas do desaparecido mosteiro franciscano, mandado erguer em 1518 pelo genovês Urbano Lomelino, jaziam de facto soterradas naquele preciso local. Tratando-se, porém, de uma propriedade privada e profusamente cultivada não foi possível, no momento, prosseguir as pesquisas. O relatório então efectuado por António Aragão, no âmbito das suas funções de delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira, no qual propunha uma urgente intervenção arqueológica no local, mereceu parecer favorável da Junta Nacional da Educação, homologado por despacho ministerial em fins de 1958. Por essa razão, o plano de actividades da Junta Geral do Distrito para o ano de 1959, já previa no seu articulado fornecer a António Aragão a logística indispensável para proceder às escavações, ficando o respectivo espólio depositado no Museu da Quinta das Cruzes. No entanto, só após a expropriação daqueles terrenos para a projectada construção do Aeroporto de Santa Catarina, naturalmente morosa e burocrática, foi possível iniciar, em Março de 1961, os trabalhos de escavação que permitiram pôr a descoberto os alicerces do complexo conventual e elaborar uma minuciosa planta. O múltiplo espólio exumado por António Aragão, quer os diversos elementos arquitectónicos ­— tais como as cantarias lavradas da porta lateral da igreja ou do seu arco triunfal ­— quer os materiais azulejares e cerâmicos, ficou, com efeito, arrecadado no referido museu. Curiosamente, as vetustas «Casas das Cruzes», como outrora era designado aquele edifício, haviam sido, desde 1678, residência senhorial dos padroeiros do Convento de Nossa Senhora da Piedade. O mencionado espólio arquitectónico foi transferido para a Casa da Cultura de Santa Cruz em 1996.

Boletim da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Junho 1961.

O Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz, numa preciosa aguarela datada de 1800. Reprodução fotográfica Vicentes.

As escavações permitiram encontrar restos diversificados das estruturas do conjunto conventual que se achavam soterrados. Foto Perestrelos. 1961.

O «ESTUDO DE PROSPECÇÃO E DEFESA DA PAISAGEM URBANA DO FUNCHAL» DE 1966

Em Outubro de 1964, António Aragão, na qualidade de delegado dos Monumentos Nacionais na Madeira, enviou à Câmara do Funchal um breve relatório, ilustrado com fotografias captadas por Manuel Perestrelo, propondo uma base generalizada de classificação e urgente conservação dos elementos mais relevantes erguidos na cidade. Realmente, nessa época, estavam em curso, com o beneplácito da edilidade, lamentáveis delapidações no vetusto tecido urbano do Funchal, como por exemplo na Rua da Carreira ou na Rua das Pretas, onde interessantes edifícios dos séculos XVII e XVIII davam lugar a construções profundamente dissonantes e, além disso, implantadas num alinhamento recuado, originando insólitos recantos no secular traçado das velhas artérias. A proposta mereceu apenas um lacónico parecer: «Para estudos». No ano seguinte, a Câmara, agora com nova presidência, debateu com o Ministro das Obras Públicas a premência de serem tomadas medidas concretas tendo em vista a manutenção do carácter e fisionomia do Funchal antigo. Nesse sentido, em Dezembro de 1965, António Aragão foi convidado a elaborar um cadastro dos imóveis erguidos na cidade, cuja conservação se justificasse, a fim de servir de base aos trabalhos do Gabinete de Urbanização que entraria em funções no início de 1966. O arquitecto Rafael Botelho aceitaria, por seu turno, o convite para dirigir a equipa que daria corpo ao novo Plano Director da Cidade, aprovado em 1972. O Estudo de António Aragão, ilustrado uma vez mais com preciosas fotografias executadas por Manuel Perestrelo, onde se propunha uma classificação para cada um dos edifícios inventariados e as providências adequadas para a sua preservação, ficou concluído em Abril de 1967. O Funchal deve, portanto, em grande medida, ao minucioso levantamento de António Aragão que em Maio de 1970 integrou a então criada Comissão Municipal de Arte e Arqueologia — a salvaguarda do seu património arquitectónico. Em 2013, o Arquivo Histórico da Madeira publicou as 443 imagens captadas para aquele trabalho, tendo sido elaboradas para o efeito as respectivas descrições catalográficas.

O INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARTÍSTICO E ARQUITECTÓNICO DOS CONCELHOS INSULARES

António Aragão, que no exercício das suas funções de delegado na Madeira da Junta Nacional da Educação vinha recolhendo, desde a década de 1950, imagens das construções mais relevantes levantadas no espaço insular — como por exemplo do Convento de Santa Clara — ou efectuando registos pontuais de uma antiga igreja ou de uma velha capela, sempre pugnou pela realização sistemática de um inventário do património artístico, que constituía aliás uma das atribuições da Junta Geral do Distrito no sector cultural. Em 1968, o presidente da comissão directiva do Museu da Quinta das Cruzes propôs àquele corpo administrativo que António Aragão, membro da referida comissão, ficasse incumbido dessa complexa tarefa que urgia, quanto antes, pôr em prática, merecendo a sugestão despacho favorável. Numa primeira fase, seria levada a cabo a inventariação do património artístico e edificado de seis concelhos — Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Calheta, Santana, Machico e Santa Cruz — tendo Manuel Rosado, proprietário da Foto Liz, então contratado para o efeito, iniciado o respectivo levantamento fotográfico em 1969. A captação de imagens das seculares igrejas, das numerosas capelas existentes na Madeira, dos seus notáveis recheios — pinturas, peças de ourivesaria, esculturas, retábulos de talha dourada, tectos e azulejaria — e das diversificadas construções erguidas nesses espaços rurais, muitas das quais hoje desaparecidas, prosseguiu depois, ao longo dos anos seguintes, nos restantes concelhos insulares.

 

A CRIAÇÃO DA «COLECÇÃO FOTOGRÁFICA» DO ARQUIVO

No âmbito das suas funções e investigações históricas, António Aragão foi adquirindo paulatinamente nas casas fotográficas Vicentes e Perestrelos, na época meras firmas comerciais, antigas imagens, tanto do Funchal como das áreas rurais, não apenas dos seus vultos arquitectónicos erguidos nesses espaços e das remotas paisagens urbanas ou agrárias, mas igualmente de velhos usos e costumes do passado que esses fotógrafos lograram registar. O vasto material acumulado, resultante dos múltiplos trabalhos efectuados ao longo dos anos, permitiu a António Aragão ─ que menosprezava determinados conceitos arquivísticos anacrónicos que, ao contrário de agora, consideravam a fotografia um «documento menor» ─ criar no Arquivo um núcleo visual que sempre ambicionara e reputava de fundamental importância futura para as diversificadas áreas de trabalho abordadas pelos investigadores. Uma parcela relevante desse precioso acervo ─ sob o título Imagens Antigas do Funchal Urbano ─ foi dada à estampa, com exaustiva descrição catalográfica, no Arquivo Histórico da Madeira em 2017. A «Colecção Fotográfica» do Arquivo, como é hoje designada, encerra também inestimáveis reproduções de antigos registos iconográficos como, por exemplo, a de uma notável aguarela ─ a única imagem que se conhece ─ do pelourinho do Funchal, apeado em 1835.

António Aragão e Jorge Bettencourt Gomes da Silva (Vicente) no atelier da Fotografia Vicentes.
Foto Jorge Valdemar Guerra. 1971.

OS LEVANTAMENTOS ETNOGRÁFICOS

Ao longo das suas prospecções, António Aragão não se ocupou apenas da efectuação dos inventários dos preciosos recheios e ornamentos do espaço sagrado das igrejas e capelas ou do estudo do notável património construído, tanto na cidade como no campo. Realmente, ao mesmo passo que uma interessante ermida era fotografada, um velho moinho que se levantava nas proximidades, um árduo trabalho agrícola ou um singelo apontamento do quotidiano rural não escapavam à sua esclarecida observação e ficavam de igual modo registados. E foi precisamente no espaço rural que António Aragão se debruçou nas suas variadas abordagens etnográficas. Ali, o património cultural popular ─ tradições, hábitos e costumes, transmitidos oralmente de geração em geração ─ ainda isolado nos limites naturais que a orografia insular e outros factores impuseram, mantinha-se de certo modo incólume, todavia, no início da década de 1970, fruto sobretudo do desenvolvimento dos transportes e da influência dos novos meios de comunicação, eram já inequívocos os sinais de que esse notável património se perdia e apagava vertiginosamente de dia para dia.

Um registo de António Aragão no Caniçal.
Foto Jorge Valdemar Guerra. 1972.

A RECOLHA ETNOGRÁFICA

António Aragão, mercê das múltiplas prospecções efectuadas ao longo dos anos no espaço rural e em face da vastidão do material etnográfico com que se deparou, cedo se apercebeu da premência de ser levado a efeito um sistemático registo sonoro do património cultural popular antes que a memória desse imenso conjunto de remotas práticas quotidianas se perdesse para sempre. Por sua iniciativa, e com o patrocínio da Junta Geral do Distrito, foi constituída uma reduzida equipa que, além dele próprio, integrava Artur Pestana Andrade, na qualidade de consultor musical, e Luís Alberto Silva, incumbido do registo sonoro, tendo também participado nesta função António Sales Caldeira, Jorge Valdemar Guerra e João Lino de Vasconcelos. Iniciados os trabalhos em Março de 1972 no concelho de Machico, a recolha prosseguiu pouco depois no Porto Santo e estendeu-se, no ano seguinte, ao concelho de Santana, realizando-se igualmente registos pontuais nos concelhos de São Vicente e da Calheta. Além da variedade de tocares e cantares ─ onde se incluem as singulares cantigas de trabalho ─ verificou-se a existência de um amplo manancial de velhas tradições que se achava depositado no âmago da memória popular, tendo sido então recolhida uma vasta gama de romanceiros, devocionários e antigos usos e costumes ─ curas, jogos, contos, superstições, lendas e pertinentes informações sobre a casa, a alimentação, o trabalho agrícola e a indumentária ─ cujas gravações constituem hoje um inestimável repositório da cultura popular insular. Uma parcela dos registos musicais recolhidos no concelho de Machico foi editada num álbum duplo em 1982.

O LEVANTAMENTO DA ARQUITECTURA RURAL INSULAR

O estudo do património edificado na área rural ─ e a sua íntima relação com o meio onde surgiu ─ despertou, desde sempre, o particular interesse de António Aragão. De facto, simultaneamente com o inventário artístico e da arquitectura erudita a que procedeu nos diversos concelhos insulares a partir de 1969, executaram-se também substanciais registos fotográficos das singulares casas madeirenses, de pedra ou de madeira, cobertas de colmo e das típicas construções do Porto Santo com cobertura de salão. Nos fins da década de 1970, e ao longo dos anos seguintes, com a colaboração de Eduardo de Freitas e de Jorge Valdemar Guerra, foi levado a cabo um meticuloso levantamento das variadas tipologias dessa ímpar arquitectura de raiz popular, plena de autenticidade, dos seus materiais e processos de construção e da organização funcional dos espaços envolventes e dos interiores das respectivas habitações, documentado com numerosas imagens fotográficas e variados desenhos, cortes e plantas. Tratou-se de um trabalho de inestimável significado, uma vez que esse notável património desapareceu, quase na sua totalidade, para sempre.

Algumas tipologias de habitações madeirenses de pedra e de madeira com cobertura de colmo. Desenhos de Eduardo de Freitas. 1986.

António Aragão em Santana durante o levantamento. Foto Jorge Valdemar Guerra. 1984.

DOCUMENTOS COMPLEMENTARES

Ficha Técnica
Conteúdos – Jorge Valdemar Guerra
Grafismo – Leonardo Vasconcelos