Os primeiros registos cinematográficos na Madeira
As primeiras produções cinematográficas na Madeira, à semelhança de toda a Europa, foram registos documentais, produzidos por portugueses e estrangeiros. A estas primeiras produções cinematográficas vamos chamar registos cinematográficos, vistas ou quadros, uma vez que a designação “documentário” é utilizada a partir de 1922.
John Benett-Stanford
O primeiro registo cinematográfico na Madeira, da autoria de John Benett-Stanford, data de março de 1899.
O Diário de Notícias (14/03/1899, p. 2) divulgou um apontamento, sob o título “Animatographo” referente à produção de um pequeno filme:
“Na sexta-feira ultima, o sr. Benett Stanford, querendo tirar varias vistas para o seu animatographo, alugou o elevador do Monte, […], tendo, durante o percurso, reproduzido algumas das bellas paizagens que d’ali se disfructám. Chegados ao Monte, […] o sr. Benett Stanford, […] dispôz as cousas por forma que um dos carrinhos de vimes, ao descer o caminho velho do Monte, fosse esbarrar num burro […] a fim de o fazer cahir sobre dois individuos que tomariam logar no referido carro. Ao mesmo tempo que se désse este facto, deviam ser despejados dois saccos cheios de farelos naquelle local, para produzir maior effeito. As cousas passaram-se, como estavam combinadas, havendo só a lamentar a escoriação causada no burro […])”.
John Benett Stanford (1870-1947)
Podemos dizer que estávamos, já, perante algo bastante elaborado para a época e com os meios disponíveis. Mas sabemos que John Benett-Stanford (1870-1947), também chamado “Mad Jack”, era um curioso do cinema. Este proprietário de terras e fotógrafo inglês esteve em serviço no Sudão (1898), como correspondente de guerra para o Western Morning News. Adquiriu uma câmara de filmar antes de partir, em Inglaterra, da Prestwich Manufacturing Company.
Em 1899, fez um par de vistas na Madeira, onde a família tinha uma casa, além de uma variedade de cenas de quinta. Nesse ano, foi o primeiro homem com câmara de filmar a ir para a frente de batalha quando rebentou a guerra Bóer. Nos meses seguintes continuou a filmar outras cenas militares na recém-criada República Sul-Africana.
Em janeiro de 1900, aqueles registos cinematográficos foram lançados pela Warwick Trading Company. Contudo, a sua carreira como operador de câmara parece ter chegado ao fim , quando foi substituído por Joseph Rosenthal.
Relativamente à produção cinematográfica na Madeira, nos primeiros anos do século XX e segundo João Maurício Marques, não existem documentos que confirmem “referências a curtas-metragens na Madeira nessa altura. A única que se conhece intitulou-se «Excursão à Madeira», foi filmada em 35mm e estreada em Agosto de 1907 no Porto, no Pátio dos Voluntários, sendo exibida a 12 de Janeiro de 1908 no Águia d’Ouro. Não se sabe quem realizou o filme (de apenas 30 segundos) nem quando o fizeram”.
Nos anos seguintes realizaram-se apenas registos documentais da Madeira, numa perspetiva turística. Salienta-se um “documentário” intitulado Madeira, realizado por estrangeiros e divulgado, em 1911, por uma empresa francesa e pelo inglês George Klein. Era uma fita de 35 mm com a duração de 90 segundos.
Joao Reis Gomes (1869-1950)
João dos Reis, natural do Funchal, foi oficial do exército, engenheiro, industrial, professor provisório do Liceu do Funchal, diretor da Escola Industrial e Comercial do Funchal, crítico, filósofo de arte, diretor do Heraldo da Madeira e Diário da Madeira.
O Cerco de Safim é o título do primeiro filme de ficção madeirense conhecido, da autoria de João dos Reis Gomes. No filme, representava-se uma cena da peça de teatro Guiomar Teixeira, que foi exibida durante a representação. Esta peça teve por base a novela histórica A Filha de Tristão das Damas, da autoria do próprio João dos Reis Gomes. Os episódios deste romance histórico caracterizavam os finais do século XV, nos quais se destacavam Cristóvão Colombo casado com a filha de Bartolomeu Perestrelo (1.º capitão donatário do Porto Santo). O jornal Trabalho e União (17 abril de 1909, p.2) também narrou a peça como a romântica aventura de Roberto Machim e Anna d’Arfet, dois apaixonados que fogem à perseguição das famílias, embarcam e chegam à vila de Machico, arrastados por um temporal.
A Filha de Tristão das Damas foi o resultado de uma profunda e rigorosa investigação histórica sobre os costumes e das personagens mais notáveis da época retratada, que o autor romantizou de uma forma empolgante.
João dos Reis foi o primeiro dramaturgo em Portugal, a conciliar a ação do cinema com a do teatro. No último quadro da sua peça histórica Guiomar Teixeira desenrola-se na tela uma batalha entre cristão e muçulmanos. s filmagens tiveram lugar no dia 25 de maio de 1913, como anunciou o Diário de Notícias: “Amanhã, pelas 6 horas da manhã, um grupo de cerca de 60 cavalleiros dirigir-se-ha para o sitio da Cancella, freguezia do Caniço, com o fim de ser tirada ali uma fita cinematographica de grande effeito” (Diário de Notícias, 24/5/1913, p.1).
O filme, com a duração aproximada de dez minutos e onde se recriava uma batalha entre cristãos e muçulmanos, foi exibido durante a representação no Teatro Funchalense a 28 de junho de 1913. As imagens filmadas por André Valldaura, (operador da Companhia Cinematográfica de Portugal, vindo de Lisboa) foram projetadas e comentadas pelos próprios atores, que se consideravam dentro da fortaleza de Safim; que eram acompanhados por uma orquestra que tocava ao ritmo da ação.
A estreia no Teatro Funchalense a 28 de junho foi um sucesso, uma vez que se tratou de “(…) uma verdadeira noite d’ arte, quer sob o ponto de vista litterario, quer pelo desempenho a cargo de senhoras e cavalheiros da nossa mais distincta sociedade”. O espetáculo iniciou-se às vinte horas, com a sala completamente esgotada, sendo a assistência verdadeiramente selecionada.
A 30 de junho O Diario de Noticias elogiou o elenco de atores, o cenário e o guarda-roupa da peça. Ao mencionar a apreciação da fita cinematográfica, exibida no 4.º quadro, Cerco de Safim considerou “(…) uma verdadeira novidade em representações dramáticas, e uma novidade feliz, pois que produziu todos os effeitos desejados, não obstante a transição, quasi inapreciável das scenas da natureza viva para as do domínio do cinema.
Podemos dizer que a introdução d’essa novidade, nas peças teatrais vae revolucionar a arte dramática, abrindo vastos horizontes à sua exploração e desenvolvimento.”
No dia da 3.ª sessão de Guiomar Teixeira, a 6 de julho O Diario de Noticias (3 de julho de 1913) alertou para a existência de poucos bilhetes, devido ao entusiamo que a peça suscitara na sessão anterior e porque “Em consequência de se ter molhado o panno, a fita cinematographica apresentou-se com a perfeita nitidez, pondo em relevo todas as suas belezas, que não são pequenas”. Outro motivo para a escassez de bilhetes está relacionada com a redução do preço de bilhetes da galeria (400 reis, frente e 300 reis, lado), a fim de facilitar o acesso às classes operárias.
Para Rui Carita e Luís Melo ara Rui Carita e Luís Melo, “A representação desta peça é considerada uma das glórias, se assim se pode dizer, ou um dos pontos altos da cultura madeirense. Efectivamente é a primeira vez que a nível nacional e em teatro, se utilizam efeitos especiais com base no cinema, o que em 1913, não deixa de ser francamente interessante.”