A Arte Negra
Desde o seu início o livro foi um dos primordiais veículos de transmissão do conhecimento, nas suas páginas em branco eram inscritas a Bíblia, crónicas, textos litúrgicos, obras da literatura clássica entre outros textos. A produção do livro manuscrito era uma tarefa partilhada entre copistas, calígrafos, iluminadores e encadernadores que se encarregavam de o embelezar externamente. A maior parte destes livros foram produzidos em casas religiosas, mas também por acção régia como salienta Doutor Artur Anselmo, algumas das melhores peças da iluminura europeia foram produzidas no scriptorium das principais casas religiosas de Portugal (Lorvão, Santa Cruz de Coimbra e Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça). O que saía destes scriptorium não era apenas um livro, mas uma obra de arte. O objeto livro era caro e quem tinha o privilégio de contar com um exemplar demostrava ter grande poder aquisitivo.
A introdução da imprensa na Europa no século XIV representa «a conquista tecnológica, motor da expansão do conhecimento que virá permitir uma difusão cada vez mais rápida e fidedigna da informação[1]».
Com o desenvolvimento da indústria tipográfica assiste-se a um aumentar de livros em circulação, verificamos aquilo que o Doutor Artur Anselmo apelidou «a passagem do livro singular (manuscrito) ao livro plural (impresso)[2]». O aparecimento do livro impresso traz consigo vantagens sobre o manuscrito. Eram produzidos de forma muito mais célere, sem grande esfoço físico, com um custo diminuto e sem a mutação do texto. As primeiras obras impressas como por exemplo a Bíblia de 42 linhas ou o Tratado sobre os artigos da fé e os sacramentos da Igreja de São Tomás de Aquino estavam estruturadas como os livros manuscritos, para maior conforto visual do leitor os caracteres tipográficos reproduzem os tipos góticos, o texto encontra-se disposto em duas colunas, sem folha de rosto, ou seja, eram honradas as regras estéticas dos manuscritos. As iniciais capitais nesta primeira fase continuavam a ser pintadas à mão. Mas rapidamente o livro impresso começou a distanciar-se do livro manuscrito em resultado do aperfeiçoamento da técnica de imprimir, passando a apresentar uma página de título, algumas contam com a marca do impressor no rosto e elementos decorativos; os dados relativos ao pé de imprensa eram retirados do cólofon, onde estava mencionado o lugar de edição, o nome do impressor e a data.
Mas a introdução da arte negra como apelidou Garcia de Resende na sua Miscelânea para se referir à imprensa fez surgir novos agentes na produção do livro. O mercado livreiro sempre fora muito apetecível desde dos tempos do livro manuscrito onde a procura era maior que a oferta. Assim, além do impressor aparecem os editores, isto porque os primeiros impressores tinham os prelos, mas faltava-lhes o dinheiro para investir, o que os obrigava a procurar a proteção de um mecenas endinheirado que os custeasse. É o caso do impressor Pedro Crasbeeck, que fundou uma das primeiras oficinas tipográficas de Portugal e a 28 de Maio de 1620 foi nomeado impressor da Casa Real por Filipe II. Em algumas das obras deste tipógrafo pode ler-se na folha de rosto abaixo do seu nome «impressor del Rey».
As artes tipográficas chegaram a Portugal por mãos da comunidade judaica durante o reinado de D. João II. Viveu um apogeu durante o reinado seguinte, onde foram criadas conjunturas que ajudaram a dinamizar esta arte, para isso muito ajudou a vinda de tipógrafos germânicos, francos e italianos, os quais contribuíram fortemente para o seu desenvolvimento. A imprensa viveu dias de retrocesso com a subida ao trono de D. João III, em consequência da vinda para o Reino da Inquisição (1536), o resultado não podia ser mais desastroso com emigração massiva da população sobretudo da comunidade judaica e um aumento da burocracia para a impressão de uma obra. Até a chegada da Inquisição qualquer obra para ser publicada necessitava de contar com o privilégio real. Ao ser concedido esta regalia um editor inibia que outro impressor (nacional ou estrangeiros) pudesse comercializar essa obra pelo menos por um período de uma década.
No século XVI a censura irá tornar-se mais enérgica, os manuscritos eram fáceis de controlar, mas com o desenvolvimento da tipografia as autoridades passam a sentir uma necessidade maior em fiscalizar o que era publicado, uma vez que o alcance do que era impresso chegava a um público mais vasto. Em Portugal a Inquisição era a responsável por este exame dos livros, até à reforma pombalina de 1768 com a criação da Real Mesa Censória.
Mas não foram só os livros que evoluíram, embora a Europa tivesse seis vezes mais o seu tamanho para o Homem da Idade Média, e as vias de comunicação escondessem vários perigos isso não inibiu que estes indivíduos viajassem e tivessem curiosidade por conhecer factos que se passavam em paragens remotas. Quem informava eram as folhas noticiosas, no começo manuscritas, foram utilizadas desde a Época pré-clássica. No século XVI é conhecida a sua difusão por toda a Europa, tendo como principal centro irradiador a cidade mercantil de Veneza. O «objectivo não era tanto o de dar notícias de acontecimentos sociais, políticos ou militares, mas informações úteis ao comércio, sobretudo situação de mercados[3]».
Também em Portugal circularam folhas informativas desde o século XVI, que de igual modo às suas congéneres europeias dedicava-se a informar sobre o comércio, mas também apresentavam «acontecimentos extraordinários de grandes batalhas, naufrágios, catástrofes naturais ou fenómenos prodigiosos que preenchia todo os números, ou com muitas e variadas notícias sociais e políticas nacionais e estrangeiras[4]». O grande sucesso destas folhas deve-se ao facto de serem baratas, a sua elaboração rápida e de leitura fácil o que satisfazia a curiosidade dos seus leitores. Mas muitas vezes as informações apresentadas não eram precisas o que fez com que muitas destas folhas tenham perdido credibilidade.
No final do século XV é publicado em Portugal o primeiro almanaque o Almanaque perpétuo. Os almanaques irão sobreviver até aos dias de hoje, esta publicação não tinha um cunho informativo com as atualidades políticas e sociais, os seus conteúdos eram tal como acontece hoje informações sobre as fases lunares, sugestão aos agricultores, o calendário litúrgico… etc.
O leitor português igual ao que acontecia com outros leitores europeus queria estar informado sobre os acontecimentos nacionais e estrangeiros para tal necessitava de um periódico rigoroso com fontes precisas e uma periodicidade certa, é assim que nasceu em Portugal a Gazeta da restauração em Novembro de 1641. Desde o começo este jornal contou com o apoio de D. João IV que não duvidou em utilizá-la com um veículo de propaganda da nova dinastia que surgiu em Portugal, desvinculando-se do reino de Espanha.
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O acervo de livro antigo impresso do Arquivo e Biblioteca da Madeira foi constituído pelos interesses de muitos doadores. Algumas obras entraram através de doações, num propósito do proprietário ou dos seus herdeiros confiarem à Região Autónoma a salvaguarda dos seus bens. A incorporação, também é outra porta de entrada no organismo e não podemos esquecer a compra, mas esta última é uma escolha feita por quem tem a função de selecionar quais as obras que melhor servem para enriquecer o acervo bibliográfico. Por fim temos que referir o contrato de depósito, que como o próprio nome indica é um contrato celebrado entre o depositante e a Instituição válido por um hiato de tempo, podendo ser renovado, em que o depositante confia à Instituição um bem, para que guarde, e o devolva quando for exigida. Com origens tão distintas não existe um fio condutor na criação deste espólio bibliográfico, mostrando as diferentes influências, e as distintas políticas culturais que existiram ao longo dos tempos, tornando-se assim uma verdadeira manta de retalhos.
Este acervo documental é constituído por catorze coleções individuais que deram entrada na Instituição em distintas épocas. A maior destas coleções é a Coleção Procedente da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Ao averiguarmos qual a origem de tão grande acervo o Guia do Arquivo Histórico da Madeira diz ser «constituído por 376 volumes, na sua maioria impressos e em latim…. Foi encontrado, em péssimas condições, numa arrecadação da Junta Geral nos anos sessenta»[5]. Curiosamente no arquivo definitivo da Instituição não existe nenhuma referência à entrada desta biblioteca, a única menção que encontramos da presença destas obras é feita no «Arquivo da Junta Geral do Distrito no relatório de actividades do Arquivo Distrital do Funchal, relativo ao ano de 1969 feito pelo então Director do Arquivo Distrital do Funchal, Aragão Mendes Correia, que ao descrever a sala cinco conta[6]»: «por inventariar os livros de Polícia, Escola Médica do Funchal e os livros impressos designados por Livraria dos Jesuítas[7]».
«A, única explicação, que justifica a entrega desta ao Estado Português encontrámo-la na consulta que realizamos a legislação portuguesa do século XIX. O Decreto de 2 de Outubro de 1862, no artigo 1.º ordena que os arquivos ou cartórios de todas as igrejas e cooperações religiosas sejam transferidos para o Arquivo Nacional Torre do Tombo. O mesmo Decreto no artigo 2.º estabelece que sejam os documentos anteriores ao ano de 1600 e de data mais moderna[8]». Não existem dúvidas que se trata de uma biblioteca religiosa, comprovamos este facto pelas «várias marcas de posse de religiosos. Mas como estas marcas só encontramos numa obra é difícil conseguir saber se vinham de uma livraria particular ou eram a única obra que o seu possuidor tinha[9]». Dentro deste núcleo conseguimos distinguir um conjunto de obras que apresentam a mesma marca de posse e que nos leva a reconhecer que são duas bibliotecas a do décimo sétimo Bispo do Funchal D. Gaspar Afonso da Costa Brandão e a da Mitra do Funchal.
A biblioteca proveniente do depósito da Junta Geral abarca livros desde o século XVI até ao século XIX. No âmbito deste trabalho iremos apenas apresentar dados sobre as obras publicadas entre os séculos XVI e XVIII pois as obras do século XIX foram tratadas como livro moderno. O século XVI é o que tem menor número de livros, todos editados na língua universal (latim), a maior parte destas edições saíram dos prelos de Lyon, mas conseguimos identificar obras impressas em Paris, Veneza, Turim, Medina del Campo, Antuérpia e Colónia. São obras sobretudo de direito, existindo também duas Bíblias e um livro sobre comentários bíblicos. Quando observamos a centúria seguinte constatamos um acréscimo de livros, dedicados sobretudo a teologia, outro assunto que se destaca é o direito. De igual modo como aconteceu com o século anterior o maior número de edições saíram dos prelos de Lyon. É no século XVIII que encontramos a maior parte dos livros desta biblioteca. São obras dedicadas sobretudo ao direito canónico, publicadas em latim e a cidade com mais edições é Veneza.
A coleção depositada do Liceu Nacional do Funchal é composta por obras editadas entre os séculos XVII e XVIII, é precisamente no século XVIII que se concentram a maior parte das monografias. As obras publicadas no século XVII são maioritariamente portuguesas, tal como as do século XVIII. Em termos temáticos são livros dedicados à literatura, onde se destaca a edição de 1623 da Comédia de Plauto. Curioso é que neste conjunto de obras encontramos nove livros que apresentam a marca de posse «Da Mitra do Funchal», o que nos leva a supor que são obras que foram escolhidas da Biblioteca que se encontrava no depósito da Junta Geral.
Outra coleção que se destaca pela sua dimensão é a do Dr. Nuno Porto, médico de profissão e bibliógrafo. O Arquivo Distrital do Funchal adquiriu a sua biblioteca no verão de 1960. Numa observação rápida e geral à sua biblioteca apercebemo-nos dos interesses do Dr. Nuno Porto pela história de Portugal e literatura portuguesa, tudo escolhido com grande atenção. Na aquisição do livro antigo notamos um especial interesse em obras saídas dos prelos nacionais. O Dr. Nuno Porto era um estudioso de bibliografia portuguesa. Não afirmamos isso de ânimo leve, constatamos que contava na sua biblioteca com a Biblioteca Lusitana de Diogo Barbosa de Machado, o Dicionário Bibliográfico Português de Inocêncio Francisco da Silva e Catálogo da coleção de livros antigos Portugueses de D. Manuel II obras fundamentais para o estudo da bibliografia nacional.
É desta coleção a obra mais antiga do presente catálogo é uma edição de 1517 editada em Lyon e dedicada ao livro dos Salmos. Nos séculos XVII e XVIII verificamos que o assunto predominante é a história de Portugal, quase todas as obras editadas em Lisboa e na língua portuguesa.
Deste catálogo também fazem parte os livros antigos do Dr. António Aragão Mendes Correia, maioritariamente impressos no século XVIII, e a maior parte destas obras foram dadas ao prelo em Lisboa. Neste espólio existe uma obra muito interessante de Tomás Vicente Tosca, impressa em Lisboa que contém gravuras com elementos de astrologia e astronomia.
Quando analisamos o acervo de livro antigo do Professor Rui Carita constatamos que o século dominante é o século XVIII, neste conjunto de livros queríamos chamar a atenção para Officia propria sanctorum Ecclesiae et Diocesis Portucalensis… publicada na cidade do Porto em 1794, está edição do Ofício Próprio dos Santos Portugueses não é tão vulgar como a do Santos Espanhóis, presente neste acervo.
A coleção do Padre Alfredo Vieira de Freitas divide-se entre os séculos XVI ao XVIII. São na sua maioria obras publicadas em Lisboa, no que se refere à temática a maior parte destas obras enquadram-se no domínio da teologia.
As coleções mais pequenas que integram o Catálogo de Livro Antigo Impresso do ABM são a de Nuno Lomelino, sendo todas edições do século XVIII, destas podemos destacar a Menina e moça ou saudades de Bernardino Ribeiro ou a obra poética de Francisco de Pina de Sá e de Melo. Outro pequeno núcleo de obras pertencente à Quinta Josefina destacamos a obra Evangelicae historiae imagines…, impressa em Antuérpia em 1596. A vasta biblioteca doada pelo Dr. José Pereira da Costa também conta com algumas edições de livro antigo impresso, a obra que mais se evidencia é a Insulana de Manuel Tomás. Deste catálogo também fazem parte os quatro livros provenientes da Escola-Médico Cirúrgica do Funchal. As coleções do Engenheiro Luíz Peter Clode, da Biblioteca de Culturas Estrangeiras e do Ateneu Comercial do Funchal são compostas apenas por um título. Outra coleção que é só composta por uma única obra é a do Dr. Frederico de Freitas, mas gostávamos de chamar a atenção para o facto da revista mais antiga da Coleção das Revistas do Arquivo Regional da Madeira ser The London magazine: or, Gentleman’s monthly intelligencer, uma edição de Julho 1786 doadas pela Casa-Museu Frederico de Freitas
Numa visão geral a coleção de livro antigo impresso do ABM é constituída por obras impressas entre os séculos XVI e XIX, cinco por cento destes livros foram impressos no século XVI, vinte e um por cento na centúria seguinte, setenta e três por cento no século XVIII e apenas um por cento no século XIX. No que se refere à temática o assunto que se destaca no século XVII é o direito, já na centúria seguinte o tema com mais evidência é o direito canónico, seguido do direito, outros assuntos com grande realce são as biografias dos reis de Portugal, e de santos e a própria história pátria. Nos séculos XVII e XVIII a cidade que conta com mais edições é Lisboa, muito embora o maior número de publicações sejam portuguesas a nação com mais centros impressores presentes nos séculos XVI e XVII é a Espanha, já no século XVIII é a Itália que apresenta o maior número de cidades impressoras oito no total. A língua predominante neste catálogo é a língua universal (latim), seguido do português, castelhano, mas existem ainda edições em francês, italiano e inglês com menor número de obras. De referir que a maior parte destas obras encontram-se com a sua encadernação original, mas nenhuma delas assinada.
O presente catálogo contém algumas edições que se destacam quer por terem tido uma baixa tiragem, ou que não tenha chegado em grande número até aos nossos dias, qualidade da impressão entre outros aspectos. No catálogo XVI destacamos alguns cadernos que fazem parte do livro Navigazioni e viaggi do cartógrafo italiano Giovani Battista Ramusio, onde este narra as viagens de muitos navegadores da sua época entre eles Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, Américo Vespúcio, entre outros.
O catálogo do século XVII apresenta um conjunto de obras interessantes, destacamos o trabalho de Francisco Alcoforado, uma edição publicada em Paris no ano de 1671. Este é o texto mais antigo conhecido sobre a «descoberta» da Madeira e que serve de fonte para outros historiadores. Curiosamente neste mesmo catálogo encontramos Epanaphoras de varia historia portugueza… de Francisco Manuel de Melo publicada em Lisboa no ano de 1676, que teve por base a obra de Francisco Alcoforado. Já no século XVIII podíamos escolher muitas obras, mas destacamos o livro do poeta madeirense Francisco de Vasconcelos Coutinho Feudo do Parnasso, e victima numerosa, que às aras da soberana magestade do muito alto e poderoso rei Dom João V… e do poeta Francisco de Pina de Sá e de Melo Palacio do destino ou epithalamio nas felicissimas nupcias do Ill.mo, e Ex.mo Senhor Henrique Joseph Maria Adam de Carvalho e Mello… , Palacio do sol, ou panegyrico gratulatorio, que ao muito alto, poderoso rei da Gran-Bertanha de Escocia, e de Irlanda &c. &c e a toda a nação britanica… e Arte poetica.
Para finalizar referir que existem alguns autores que encontramos as suas obras presentes em mais de um século. É o caso de uma das obras do Padre Manuel Álvares, a sua gramática encontramos duas edições a primeira publicada em Palermo no ano de 1615 e a segunda uma edição portuguesa datada de 1751. Outro autor é Agostinho de Barbosa, embora a maior parte da obra deste Jesuíta especialista em direito integre o catálogo do século XVIII existe uma edição da mesma obra no século XVII.
Funchal, Abril de 2020
Sofia Bettencourt da Silva
Bibliotecária
Doutora em Bibliografía Y Documentación Retrospectiva en Humanidades