«Nunca é de mais afirmar que a família é o núcleo mais importante da vida da criança […].»[1] Sendo assim, quando não existia uma família como estrutura de apoio à criança, eram criados mecanismos para suprir essa inexistência.

Século XIX

«No século XIX, delimita-se a linha fronteiriça entre a família e a comunidade. A família torna-se mais privada, com características de domesticidade, restringindo os laços exteriores. Assim, a criança começa a ser vista como um sujeito especial e a família tem a responsabilidade de primar pelo seu desenvolvimento até à vida adulta.»[2]. «O núcleo familiar era estruturado de forma diferente da actual; funcionava como um clã, em que os avós ocupavam um lugar especial [e] eram amados e respeitados como fiéis depositários de saberes e tradições seculares, sendo os responsáveis pela transmissão do saber da comunidade às novas gerações.»[3]

Guerra Junqueiro, na sua obra poética, apresenta-nos uma outra realidade, a das crianças desprotegidas. Com efeito, no Portugal contemporâneo de Junqueiro, havia um número incontável de crianças desfavorecidas.

«É triste numa idade toda esp’rança/ Não ter nem pai, nem mãe, um só abrigo…/ Ai! custa, custa tanto!…»[4]

JUNQUEIRO, Guerra, 1885, Baptismo de amor. 2.ª ed., Porto, Livravria Cruz Coutinho

Órfãos, abandonados, expostos e desvalidos

Há várias designações para caracterizar a situação da criança em estado de abandono ou pobreza, como é o caso de órfão, exposto, abandonado e desvalido, verificando-se alguma confusão na aplicação da terminologia. Posto isto, as crianças órfãs são as que foram privadas dos pais; as crianças expostas, as filhas de pais incógnitos; as crianças abandonadas foram deixadas ao desamparo pelos progenitores, e as crianças desvalidas, as que não conseguiam ser sustentadas pelos pais, nem tinham familiares que pudessem encarregar-se delas.

Assistência à infância na Madeira

Na Madeira, no contexto da existência de inúmeras crianças carenciadas, foram criadas estruturas de assistência a esses desfavorecidos, como o caso da Roda dos Expostos ou do Asilo de Mendicidade e Órfãos do Funchal.

Roda dos expostos

A roda dos expostos era uma «espécie de portinhola giratória onde crianças […], geralmente de poucos dias, eram deixadas, para ficar sob os cuidados de uma instituição de caridade, sem que a sua procedência pudesse ser identificada pelos internos. Desta forma, mantinha-se o anonimato da mãe e aumentavam-se as hipóteses de sobrevivência da criança.»[5]

A Santa Casa da Misericórdia do Funchal instituiu, em 1724, uma roda dos expostos cuja criação ficaria a cargo da Câmara. Ao ser encontrada na roda, a criança era recolhida pela Ama Geral que lhe prestava os primeiros cuidados de saúde. Depois, era conduzida à Câmara, a fim de ser registada no Livro de Entrada dos Expostos. O escrivão descriminava todas as informações sobre a criança, tais como o nome atribuído, a data e hora de nascimento, o local da exposição, os “sinais” particulares que permitissem identificar a criança, entre outros.
A maior parte delas trazia consigo um bilhete no qual o progenitor referia o nome a ser dado à criança e o “sinal” que permitiria identificá-la quando, ou se ela fosse recuperada. O escrivão anexava os bilhetes e os sinais nas margens da página onde constava o registo. Por último, referia o nome, estado civil e a residência da ama de leite, responsável pela criação do exposto.

Livro de Entradas de Expostos, 1858/1865. DRABM, CMFUN, liv. 321.

Entrada de criança exposta “Isabel de Nóbrega” a 12 de dezembro de 1860. Foi entregue à mãe a 14 de setembro de 1861.
Ao registo foi adicionado o bilhete dos pais.
Transcrição abaixo.

Esta criança nasceu no dia 5 de Dezembro, seus pais não podendo manifestarem-se como autores de sua existência imploram a beneficiência dos Illustríssimos Câmara, e pedem ao Meretíssimo Vereador a quem competir, a confie a pessoas idóneas que lhe dê bom e decente trato, pois oportunamente será gratificada.

Quer se que seja lhe dado o nome d’Isabel. Leva como sinal para ser conhecida e não confundir-se com outra, uma fita azul no braço direito, parte da que fica em poder dos pais para por ela conferir  e verificar a identidade da pessoa.

A própria ama a quem a criança for confiada será enviado algum fato. Roga-se ama de bons costumes e saúde regular.

Com a extinção da roda dos expostos, desde 1867, «a regulamentação geral que nasce a partir de então preocupa-se, fundamentalmente, em restringir os abandonos de crianças mediante identificação parental e em conceder subsídios de lactação às mães ou parentes pobres. As “casas de caridade” substituem as rodas. No caso do Funchal é o Asilo de Mendicidade e Órfãos que cumpre com esta função.»[6]

 

LEITURA COMPLEMENTAR

O Asilo de Mendicidade e Órfãos do Funchal

O Asilo de Mendicidade e Órfãos do Funchal, instituído em 1847, «foi da iniciativa do governador civil do Funchal, José Silvestre Ribeiro, um homem progressista para o seu tempo. A caridade prestada era financiada sobretudo por fundos públicos, subscrições privadas, esmolas e legados testamentários. […] Os socorros prestados, com ou sem internamento, tiveram como beneficiários uma população adulta e infantil (de ambos os sexos) fustigada pela fome, doença, velhice, orfandade e variados tipos de exclusão social. Este Asilo foi extinto em 1959, sucedendo-lhe o ainda existente Abrigo Infantil de Nossa Senhora da Conceição (1959-___) que, como o nome indica, mantém a tradição assistencial da Casa que lhe antecedeu, pese embora actualmente já não se dedique aos adultos. As atribuições deste Abrigo centram-se exclusivamente nas crianças e jovens em risco social (em regime de internato, semi-internato e jardim de infância)»[7]

 

Planta do edifício do Asilo de Mendicidade do Funchal, 1861. DRABM, JGDFU N, DOP, cx. 594, n.º 19.

As Amas

Para além das mencionadas amas-de-leite, recrutadas pelas câmaras para cuidarem dos enjeitados, havia outro tipo de amas, as que prestavam serviços a famílias privilegiadas.
«Entre as classes altas da Europa, tornou-se moda contratar uma nurse, uma mademoiselle ou uma Fräulein. Algumas famílias, ansiosas por exercitar os dotes linguísticos das crianças, chegavam a contratar as três. […] Desde o final do século XVIII existia o consenso de que as melhores amas vinham da Grã-Bretanha.» Clássicos da literatura infantil como Mary Poppins e Peter Pan retratam o universo das nannies e alimentam esse imaginário.[8]

Século XX

Em Portugal, a I República criaria na constituição de 1911, o direito à assistência pública, lançando as bases para um regime assistencial moderno, distanciado da caridade.

«No final do século XIX e início do século XX, as crianças [ ] representavam quase metade da população. A diminuição registada em 1920 tem a ver com os anos conturbados da Primeira República e especialmente com os efeitos da I Grande Guerra, na qual Portugal esteve diretamente envolvido. Observou-se no “entre guerras” um baby boom e, em 1940, as crianças e adolescentes compunham metade do tecido social de Portugal.»10


A partir dos anos 60 do século XX, verificou-se uma redução significativa do número de famílias alargadas, mesmo em meio rural, paralelamente ao aumento de famílias de uma única pessoa. Observou-se também a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, que resultou em transformações na estrutura da família e na redefinição dos papéis dos progenitores.
«O olhar da sociedade portuguesa ante o lugar da criança na família transforma-se radicalmente. A educação aproxima-se de
padrões modernos, abandonando ideias antigas de férrea disciplina e obediência cega.» 11 A criança torna-se o centro da família e o seu bem-estar torna-se um propósito para os pais. No entanto, esse objetivo desperta também inúmeras questões e inseguranças.

Publicidade a livros de puericultura na revista Ilustração. Década de 1920.

«O pediatra norte-americano Benjamin Spock é o muito bem sucedido guru de milhões de mães angustiadas, com livros como Meu Filho, Meu Tesouro. Publicado originalmente em 1946, este foi, em todo o século XX, o segundo livro mais vendido nos Estados Unidos, depois da Bíblia. […] Em Portugal, o livro só saiu após o 25 de Abril.»12

À semelhança do livro de Spock, muitos outros surgiram para dar resposta a uma geração de educadores sedenta de informação.

SPOCK, Benjamin, 1975, Meu filho, meu tesouro: como criar e educar os filhos, 3.ª ed., Mem Martins, Europa-América.

«Não é verdade que exista uma “família tradicional”, […] o que existe são diversas formas de família.»[…] o que existe são diversas formas de família.»13

1 CORDEIRO, 2015, Crianças e famílias […], p. 36.
2 GUERREIRO, 2010, A literatura para a infância […], p. 419.
3 GUERREIRO, 2010, A literatura para a infância […], p. 444.
4 JUNQUEIRO, 1885, Baptismo de amor, p. 15.
5 MARTINS, 2014, História da criança em Portugal, p. 45.
6 GOMES, 2016, «A política assistencial […]», p. 197.
7 GOMES, 2019, «Juízos dos Órfãos do Antigo […]», p. 307.
8 MARTINS, 2014, História da criança em Portugal, pp. 114-115.
9 CORDEIRO, 2015, Crianças e famílias […], p. 36.
10 MARTINS, 2014, História da criança em Portugal, p. 167.
11 MARTINS, 2014, História da criança em Portugal, pp. 169-170.


CORDEIRO, Mário, 2015, Crianças e famílias num Portugal em mudança, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.
DINIS, Márcia, 2001, Os expostos no Concelho do Funchal (1820-1869): um estudo de história social, Funchal.
GOMES, José, 2016, «A política assistencial da Junta Geral do Distrito do Funchal (1836-1892)», In AAVV, Junta Geral do Distrito do Funchal (1836-1976). Funchal, Secretaria
Regional da Economia, Turismo e Cultura.
GOMES, José, 2019, «Juízos dos Órfãos do Antigo Regime e o Estado da Questão: História Institucional e Arquivo – Pistas para a Investigação do Tema na Madeira (Século
XV-1834)», In Revista Arquivo Histórico da Madeira Nova Série, n.º 1.
GUERREIRO, Carla, 2010, A literatura para a infância nos séculos XIX e XX: contributos socioculturais e contributos pedagógicos, Dissertação de Doutoramento em
Ciências da Literatura/ Literatura para a Infância, Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
JUNQUEIRO, Guerra, 1885, Baptismo de amor. 2.ª ed., Porto, Livravria Cruz Coutinho.
MARTINS, Maria João, 2014, História da criança em Portugal, Lisboa, Parsifal